terça-feira, 27 de maio de 2008
poemas dispersos
encontrei-me contigo num jardim
de verão onde chovia
vi-te primeiro estavas leve
abençoada e clara
viste-me a seguir cor-de-rosa
como uma flor japonesa
de antiquíssima lembrança
rezámos junto ao lago
concentrados nos peixes e nas folhas
rezámos a tudo a quanto um ser pode rezar
até que um de nós
já não me lembro qual
tirou o revólver e disparou sobre o outro
caímos de semblante sereno sobre a terra
deixando que os pássaros nos cantassem
é bom lembrar a nossa morte
sobretudo porque nesse dia estávamos
lá os dois e aquele tiro nos eternizou
foi a primeira vez que sorrimos
com a calma e a tranquilidade
dos grandes poetas
segunda-feira, 26 de maio de 2008
poemas dispersos
fechou-se o palco com um actor lá dentro
fecharam-se as cadeiras
as luzes
os alfabéticos-pirilampos
baixou o lustre com os grandes e os
pequenos cristais de quartzo
correu a cortina de ferro
fechou-se o palco com um actor lá dentro
nesta casca de ovo o actor
respirou
enfim
por fim
até ao fim
e silenciou-se numa espécie de chão
e madeira
lembro assim o actor que foste
e as horas que passo sem ti
hoje
dia em que também estou fechado no ovo
respiro o fumo que deixaste do último cigarro
e é de um corpo triste e derrotado
que faço a minha vitória
domingo, 25 de maio de 2008
poemas dispersos
na mansarda em frente ao café
há rosas-de-santa-teresinha
no campo
aqui mesmo ao lado
os pastos ficam vermelhos de flores
e outros pequenos milagres
ver a beleza destes dias é ver simplesmente
é tornar os olhos mais lentos
arrastar as palavras
descobrir na retorta do alquimista
o sucesso que elevará o chumbo a ouro
amanhã choverá outra vez
até talvez já esta noite
e a beleza solsticial esconder-se-á
como numa concha se escondem anéis
e
sem palavras
os pastos voltarão a ficar verdes
só os alquimistas continuarão o labor
no seio do athanor, as rosas
sábado, 24 de maio de 2008
poemas dispersos
a chuva que cai não é chuva que cai
há mastros que se inclinam
e escotilhas e abelhas a toda a roda
a vegetação adensa-se aqui e ali
e os poetas que cantam isto
também não são poetas porque se fossem poetas
só olhariam a chuva que cai
os mastros que se inclinam e as escotilhas
por onde as abelhas querem passar
da mesma maneira estes dias mais longos
de uma primavera húmida e sem vento
não são os dias longos de uma primavera
húmida e sem vento
nem o amor que se sente é amor
se fosse amor era só amor e não
um amor que se sente
tudo é uma réplica da verdadeira condição
de se ser natural e poeta no veio
longo e lúcido – estranhamente lúcido – de uma
rocha que uma vez escalada nos abriria
a porta das cavernas douradas
onde na realidade nunca fomos
quarta-feira, 21 de maio de 2008
poemas dispersos
o vulcão sopra mesmo ali junto à fonte
é um vulcão simples de asas justas
e cauda de noiva
quando estremece toda a terra vibra
e ao vibrar encontra
mais uma pedra oculta dos antigos magos
depois há os petroleiros e as suas grossas
amarras os frutos secos da pastelaria
a mulher gorda de outrora que os engolia
em habilidades de circo e de poema
a fonte essa não se mexe
é demasiado humana para se dar a tais luxos
deita água quando é preciso
e no repuxo máximo até o vulcão parece pequeno
de santa-apolónia partem os trens para frança
e para espanha e os gritos das aves parece tão
mais vivo quanto mais alto o voo
e a vontade de pescar
o vulcão não é nada neste bairro
porque o estremecimento que provoca com
as suas erupções não corrompem o andar de ninguém
nem ninguém se preocupa com pedras ocultas
tudo ali é o que parece menos o vulcão
que sendo um vulcão nem se consegue fazer comparar
à descarga de um navio ou à chuva dos dias negros
segunda-feira, 19 de maio de 2008
poemas dispersos
roma paris berlim trieste moscovo
toda a ásia desertos de areia
desertos de gente
céus encobertos – rios encobertos
nevoeiros rasteiros cães nadando
nas enxurradas d’água
«cães de barcelona» - o meu anel de lis
no fundo de um lago
os sinos e os monges
roma paris trieste moscovo
comboios de gente – lisboa
nove e quarenta e cinco da manhã
passa pesado o metropolitano
rua do arsenal – tejo
rua do arsenal – armas pela república num dia
rua do arsenal – armas por abril noutro
são dez horas da manhã
o sol fez-se redondo e chuvoso
são dez e três – centro da cidade – birmânia
domingo, 18 de maio de 2008
poemas dispersos
procurei que as coisas acontecessem
procurei no céu olhares misteriosos
e na terra o sabor sereno dos diospiros
plantei algumas árvores
e desenhei e escrevi e pintei
terá sido em vão porque não se procura
nada nos céus nem na terra
porque de nada vale o sabor de um fruto
ou um desenho um vocábulo uma cor
ainda assim
quando não esperava
encontrei uma pequena esfera no chão
desconheço o seu uso mas trago-a na mão
sábado, 17 de maio de 2008
poemas dispersos
é um outro jogo
: uma poeira azul espalha-se
por toda a parte
entranha-se na pele e nos ossos
basta um movimento errado
basta um movimento
basta não se estar a dormir
as regras são precisas
infalíveis – dolorosas
um pensamento a mais e fecha-se o mar
contrai-se o rio
e os navios morrem na sua embaixada
sexta-feira, 16 de maio de 2008
poemas dispersos
aqui tão preso à criatura que os
meus
olhos cegos vêem
fico incapaz de qualquer movimento
criador sou – também eu – só
criatura Nisto o cavalo salta
branco como as pedras do deserto
Estremeço
, reparo-me cansado demais
para o acompanhar.........;o desejo adormece
e a bela criatura depois do salto corre
em direcção às folhas dos canteiros
hei-nos no coração da Metrópole
quinta-feira, 15 de maio de 2008
poemas dispersos
confundem-se árvores
cai água desamparada
mente sobre os troncos
as folhas rebentam nas copas
«chove»
está-se sozinho num
bosque transfigurado em
plena cidade – sem uma palavra
alguém – uma mão – é num
café que acendo só
mais um cigarro
poemas dispersos
confundem-se árvores
cai água desamparada
mente sobre os troncos
as folhas rebentam nas copas
«chove»
está-se sozinho num
bosque transfigurado em
plena cidade – sem uma palavra
alguém – uma mão – é num
café que acendo só
mais um cigarro
quarta-feira, 14 de maio de 2008
poemas dispersos
sei que existo – sinto pernas
e olhos: os dedos mexem
… mas, à minha volta
, tudo está corajosamente congelado
menos os Pássaros que também existem
e devem sentir as pernas e as penas
e os olhos, a rodarem nas órbitas – por
isso os procuro – mas não
, não encontro Pássaros ao olhar
ouço-Os, mas não os vejo
quando encaro o alto
diante de mim
só vejo um lastro quente de sangue negro
terça-feira, 13 de maio de 2008
poemas dispersos
13 de maio de 2008 – dia da mãe do mundo
na ternura perdida das mães
reside a dureza real dos filhos
que como sereias encantam
marinheiros e soldados
chamando-os para uma revolução
sem princípio nem fim
sem mares onde naveguem corvetas
da guerra dos anjos e das rosas
imaculadas mães
que justas na produção
dos filhos os envolvem numa placenta
de veneno e sol e lhes dão vida
para que morram depois
os filhos santificam essas mães
procurando ser o os seus amantes
distantes e gritantes
filhos mortos de mães mortas
e a vida a florescer em
naves de água pura e em frechas
de rocha onde alguns se escondem
mães cruéis na criação dos filhos
mães sem olhar
sem cheiro
sem terra a que pertençam quando
sepultadas, filhos translúcidos
num colectivo enforcamento de sonhos
segunda-feira, 12 de maio de 2008
poemas dispersos
os antigos guerreiros
traziam nas suas armaduras
cruzes de prata
pintadas de escarlate e
erguiam sobre as cabeças
elmos em chama
cavalgavam sobre campos d
esconhecidos: bosques, desertos
,gigantescos lagos e ainda
assim
nada os detinha – nenhum vento
apagava a tocha que lhes indicava
a senda – um dia perderam
o tesouro que os mantinha vivos
uma arca de vitral
onde guardavam as relíquias
sagradas da deusa
a deusa de todos os deuses
as armaduras caíram por terra
os elmos fizeram-se água
mas as cruzes escarlate
continuam enterradas nas campas
brilhando sempre que o sol
se põe tentando salvar os
poucos peregrinos que ainda p
ro
curam
a rainha-santa
poemas dispersos
os poemas já não chegam
nem as palavras – nem os pequenos
vocábulos antes cheios de sonho
falta tudo
:fadas, elfos, os grandes sábios
faltam os doces olhares dos dragões
a plenitude das mães
até o desespero dos dias antigos
e não são coisas que se possam procurar
…
dantes os navios passavam junto
à minha rua
e era ao som desses sinos de catedral
que sonhava começar um dia
bebendo do rio o frio e a vontade de chorar
nesses dias choviam cartas
– «o espanto» de que falavam o
s livros de ponty – ¿para que os terá escrito ele?
sabendo de antemão
que da caverna primeira nenhum sinal
chegaria, nem eco, nem amor –
os poemas já não chegam
a quimera partiu e com ela
as anões, os gigantes, os ogres, afinal
todos os deuses de um astral amoroso
e natural. ei-nos sós neste
pedaço enquadrado de cores brancas
cores perdidas em telas perdidas
e o homem anda, soluça
conta tostões sobre a mesa
esperando que por debaixo dela
uma fada de olhos claros
se aventurasse a pegar-lhe na mão
e elevando os olhos o fizesse adejar
… mas os poemas morreram com os poetas
(vem-me agora à cabeça a música
dos versos de herberto)
…
nesta noite, subitamente
(enquanto escrevo)
ouço na rua um animal
uma besta que se esfrega para encontrar
comida
antes isso – digo em voz alta – que andar
rastejando debaixo de uma mesa
numa procura cega
por um espírito da natureza que
sei, com certeza,
ausente
invisível.
mesmo morto.
antes a besta
que a lira de herberto
;os navios do rio
;os espantos nos sinais de ponty
não.
os poemas já não chegam
estamos abençoadamente
próximos do fim
sábado, 10 de maio de 2008
poemas dispersos
são páginas de calendário
só páginas de calendário
centenas de milhar
números
pequenas notas
nomes
de
gente de um dia
– iniciais –
pequenos recortes mal colados
…
deve haver mais alguma coisa
tem de haver
qualquer coisa brilhante
sonora: um corcel
sexta-feira, 9 de maio de 2008
poemas dispersos
sentado num moinho feito trono
espero um cavaleiro
tenho as pernas recolhidas
o torso tenso e revolto
corujas circulam no telhado
estarão assim toda a noite?
cúmplices e raras aves
há estrelas
uma linha de lua
sentado num moinho feito trono
adormeço
quinta-feira, 8 de maio de 2008
poemas dispersos
um primeiro dia algumas cores
o cavalo que corre
o bispo avança no xadrez
tantos rostos peões
à volta do campo de batalha
numa cerca verde
nascem livres flores-do-deserto
segunda-feira, 5 de maio de 2008
poemas dispersos
perfiladas de negro
as bandeiras
as nossas bandeiras
e os ratos a cantar
a cantar os hinos
os nossos hinos – nas praças
nas nossas praças
e os gatos a adorar
a adorar pobre bomba a rebentar
poetas sem sabor
num pedaço de pão
carne a apodrecer e nem
um tiro de canhão
domingo, 4 de maio de 2008
poemas dispersos
talvez o barco se tivesse virado
ou o mar se tivesse virado
qualquer coisa ficou fora da órbita
de repente um aperto forte
e as veias torcendo-se em choro –
uma contracção no peito
tremor nas pernas
até que ao longe as gaivotas
planaram de novo com doçura
e tudo ficou calmo – o barco –
e o oceano na sua transparência
sábado, 3 de maio de 2008
sexta-feira, 2 de maio de 2008
poemas dispersos
corre meu corvo
corre se as tuas asas já não podem
refugia-te no negro
usa a espada que tens como bico
corre para o mar lá estarás a salvo
lá
nem barcos nem homens nem animais
te atormentarão
corre meu corvo
corre em direcção ao sal e ao sol
de um mar alto onde tudo te protegerá
quinta-feira, 1 de maio de 2008
poemas dispersos
quando ouvia a tua voz escrita
acendiam-se os olhos
d’uma noite inteira
marcavam-se no amplexo do céu
pequenos pontos brancos
que fixava como se fossem
candeias angélicas
ou diamantes lapidados
brilhando à luz de um sol negro
calo agora essa voz
e adormeço cego de luzes
acrescentando: para sempre
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