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domingo, 12 de setembro de 2010

Satã
















#28

Os que sabem compor os movimentos das mãos
sobre esse enfeitiçado teclado de acordes,
e dar-lhes sequência e perfeição, não são músicos,
são sedutores, felizes. Sem saberem que são magos
,que são felizes. Os mestres de ilusionismo
nunca estão cônscios da sageza que carregam, muito
menos da felicidade de que padecem. Por isso, a felicidade
deles é eterna, limpa e violenta.
Só os não-escolhidos, os não-aventurados, divisam a imensidão
e a grandeza desses brilhantes fascinadores e, sabendo que nunca o
poderei ser, choro em louvor de graças, antiquíssimo tambor.

Frederico Mira George

sábado, 11 de setembro de 2010

Satã
















#27

Uma cavada dormência.
Ossos a abrir. Eis a noite larga e sem lume.
Na casa, pairam terrores e afiguradas flores
sobre mesas de chá. Flores e chá. Tão pouco
para uma paz continuada. E ainda assim:
os espectros. Pelas veias das mãos gritam amores
que o vento corta na aragem musical das janelas.
À noite, quantos desenhos e livros e cigarros,
quantas formas distintas de entreter cronos ficarão
registadas no espaço? Quem é o espaço? Quem anota a dor?

Frederico Mira George

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Satã




















#26


Ela já não se consegue lembrar,
sabe apenas que dantes habitava um outro lugar
onde tudo era vítreo, lúcido e transparente. Hoje
nem sabe como nasceu nem porque ainda carrega uma candeia
apagada pela fadiga – essa onde no princípio dos tempos
trouxe a chama sobrenatural – simplesmente,
habitando no hiato de uma frágua, contempla
as sandálias: recordação última da Terra dos Juncos.

Frederico Mira George

domingo, 5 de setembro de 2010

Satã















#25


Uns minutos antes de entorpecer os sentidos – nos dias
em que adormeço – por bendição ou indulgência,
tenho um último entendimento: a visão clara e
irrepreensível da Aurora que se achega. Nas
noites em que adormeço, a minha derradeira visão em vigília
é a Estrela d’Alva, e assim durmo, confiando na morte,
como se nada me pudesse abalroar o físico ou cruciar a mente.
Ter, momentos antes do sonho, a visão da Estrela da Manhã, é
como se, na cama, me alasse ao céu mais remoto, e
o colchão, as almofadas, os cobertores, tudo pertencesse à
amalgama de brilhantes siderais com que o meu ser é consumado.

Frederico Mira George

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Satã



















#24


São sublimes os clamores das aves: afilados e formais.
Como ser exíguo e desigual, sinto-me elevado
e arvoro até às sinuosidades do
espaço-céu, que também me pertence, e sinto uma extremidade
de alegria a arranhar-me a respiração, a desentorpecer-me os
músculos oculares. Vejo tudo, tudo o que os pássaros e as suas cores
conseguem entrevir. Vejo por imaginar, e ver por imaginar
é ver com a realidade máxima que têm no coração todos os filósofos,
todos os poetas que não sabem que são poetas, que são
filósofos. A manhã inicia-se magnetizada pelos hinos canoros.

Frederico Mira George