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segunda-feira, 31 de março de 2008

o caderno feliz #14

#14 a terra parece mármore será que ouço um mocho será que ouço a terra parece mar pressinto navios ancorados e gente a nadar apetece-me mudar de nome soltar as amarras e subir pelo céu num voo longo e vertical poderia jurar que é um mocho um mocho caçador anunciando a sua primazia sobre os outros predadores caminho suavemente sobre o mármore e inscrevo como numa lápide mortuária o meu epitáfio peregrinator/

quinta-feira, 27 de março de 2008

o caderno feliz #13

#13 há sol a praia passa perto de uma linha telefónica anseio três seixos com que farei um oráculo o cão dorme no piso de cima uma cão doce de coleira verde a esta hora já os meus olhos estão vazios e o caos toma conta dos actos assim deixo-me levar pela praia pela expectativa dos seixos/

o caderno feliz #12

# 12 há nuvens japonesas no céu paisagens celebrantes e árvores de flores brancas amendoeiras as cotovias cantam para e só para nosso deleite recortado no azul um cavalo e um cavaleiro/

terça-feira, 25 de março de 2008

o caderno feliz #11

#11 com estas palavras só peço chuva inundações gigantes ondas gigantes cabelos gigantes toda a terra me denuncia e os anjos olham-me sem ouvidos/

segunda-feira, 24 de março de 2008

o caderno feliz #10

#10 é ouro grande lápis esforçando-se por desenhar é todo ouro ouro sol branco papel lápis branco e mar vejo o meu nome numa parede e basta-me para atestar a minha existência sou a prata restante o restolho de um ourives por natureza cruel jamais serei moeda lua cheia só me é dado contemplar/

domingo, 23 de março de 2008

o caderno feliz #9

#9 – domingo de ressurreição hoje os meus dedos abriram-se em flores e sangue quente durante a noite as almas visitaram-me embalando-me na tranquilidade de um sonho transparente graciosa candeia de lua rasgando o coração por onde uma mão entrou carinhosamente amante/

sábado, 22 de março de 2008

Hi5

http://fredericogeorge.hi5.com

o caderno feliz #8

#8 – sábado de aleluia são os pés que paralisam os olhos que se fecham formam uma cruz repleta de semi-deuses a travar o caminho talvez a cruz seja ilusória a verdade é que é impossível dar um passo regressar ao presente não fugir o vento tornou-se violento e os anjos resguardaram-se dos homens terá sido esta a verdade dos profetas/

sexta-feira, 21 de março de 2008

quarta-feira, 19 de março de 2008

o caderno feliz #6

#6 caem-me os cabelos os pássaros gostam eu gosto só não consigo suportar estes óculos não é que não me sirvam mas pesam-me como se em mim tivesse entrado toda a tristeza do mundo ou eu próprio fosse toda a tristeza do mundo os pássaros bicam a minha cabeça cada vez mais despida e quando olho em frente só consigo fixar a devastação das árvores já morreram quase todas caçadas por uma qualquer mente adversa à serenidade cai-me a pele os pássaros gostam eu gosto só não consigo suportar estes óculos/

sábado, 8 de março de 2008

o caderno feliz #5

#5 as noites eram o meu espaço de felicidade mas há duas semanas que um intruso penetra nas minhas propriedades oníricas revolvendo os meus sonhos a maneira certeira e lúcida com que ele o faz leva-me a crer que seja um menino morto por nunca ter adormecido a tempo de o ver ele escapa-se e sabe o que faz percebo que só quer apoderar-se dos meus sonhos tem com certeza tudo planeado e por qualquer razão desconhecida escolheu-me a mim como vítima e que posso eu fazer se é um anjo caído/

o caderno feliz #4

#4 há dias em que acontecem inexplicáveis surpresas como ontem ao principio da noite homens puseram enxofre a queimar nestes casos os gatos fogem abençoando o espaço com gritos interiores é que um gato reconhece sempre uma invocação do diabo e talvez nem se trate de uma fuga mas de uma retirada como um soldado que se atrasa no xadrez da guerra preparando-se para um combate mais feroz/

SOS Voz Amiga

Texto escrito por solicitação do SOS Voz Amiga a palavra certa frederico mira george para o fernando eis dois homens na noite da rádio um de palavras serenas suicidas e certas algures na cidade outro de palavras sedutoras curtas e certas o homem do outro lado do estúdio está confiante irredutível o homem na telefonia-sem-fios está lúcido mas com medo há quantos anos a sua vida é feita de ler vozes trinta talvez sabe que o outro homem não brinca vai matar-se e quer fazer o espectáculo da sua morte quer fazer da sua morte ao menos um minuto de glória para o homem da rádio basta-lhe um tom uma ténue vibração de voz para saber o passo seguinte é nisso que confia a determinação do homem ao telefone é verdadeira e quase impossível de vencer na régie chamam a polícia quinze minutos é o que precisam o homem da telefonia tem de ter a palavra certa para o manter no ar o homem para lá do estúdio eis um duelo de dois grandes guerreiros no xadrez da amada rádio dos sons e silêncios deles depende a morte de um ou a frustração culpada do outro não pode haver erros de parte a parte para o homem suicida nada o pode seduzir para o homem ao microfone cada palavra tem de seduzir quem os escuta no éter nem se apercebe quão gigantes estes homens são a polícia leva mais tempo que o previsto o suor cai sobre o rosto de ambos os guerreiros as palavras de passe continuam são elas que dão acesso ao nível superior do xadrez estão os dois prestes a rebentar as palavras tornam-se finais os silêncios aumentam a estação da rádio está feita uma esquadra de polícia o homem da rádio diz a primeira palavra errada o gigante do outro lado assusta-se mas não foge a polícia encontra o local perto dali afinal o éter era mais pequeno do que se imaginava talvez seja por pouco e foi pelo microfone ouvimos agora o repórter que descreve um quarto entrincheirado e preparado para a explosão de pontas de gás o telefone cai o repórter silencia-se no estúdio o homem da telefonia deita-se no chão exausto uma ideia atormenta-o não lhe sai da ideia a traição que talvez tenha feito ao homem do telefone a sedução da sua voz cativou o suicida puxou-o para a amada rádio terá isso sido legítimo terá ele salvo este homem da morte ou tê-lo-á condenado à vida eterna/

PAX


Pintura de Tânia Calinas
Acrílico sobre platex

terça-feira, 4 de março de 2008

o caderno feliz #3

#3 não chove apesar de estar um céu negro e ameaçador tenho o meu chapéu desde os dezassete anos está coçado e velho mas encaixa na minha cabeça como uma luva perfeita serviria numa mão perfeita as manhãs assim são horrivelmente roxas e demoradas desejava poder conversar conversar muito com um humano ou um animal que me acariciasse não sei se saia se ponha o meu chapéu a ausência de chuva ameaça-me talvez não talvez o que me ameace seja a presença do céu carregado sabendo que não vai chover nem trovejar são manhãs sem ninguém manhãs de frio estando calor apenas encontro conforto num casaco que encontrei na rua e que transmite ao meu corpo uma satisfação quase pura plural e afinada um pretexto para ter algo em que pensar penso pouco e quando penso é nestas coisas no chapéu no casaco na chuva retardada para um verão que há-de vir e se sente pelas costas como se de alguém se tratasse com uma pistola em punho pretextos por todos os lados para matar as horas anseio a chegada a uma outra terra a um outro lago anseio ver com outros sentidos este lado tão curto da vida/

domingo, 2 de março de 2008

o caderno feliz #2

#2 acordei e senti-me uma raiz de mandrágora com um foco de luz azul-gelado a observar-me virei a cabeça assustado em pânico e reparei na presença serena de malone está a morrer de samuel beckett em cima da mesa de cabeceira isso acalmou-me a luz fundiu-se no escuro da madrugada e o meu corpo abandonou a textura humana da mandrágora foi quando começaram os gritos miados da gata do primeiro andar num cio atrasado já não estava só do pânico total passei à tranquilidade do dia quase a despontar então senti uma humilde vontade de estar grato a tudo especialmente à gata do primeiro andar apesar de ver tudo a branco-e-negro consegui pôr mirra e funcho no turíbulo em oferenda ao dia que estava a nascer deitei-me de novo e adormeci numa paz de bach todo eu era uma dormência feliz/

o caderno feliz #1

#1 gosto de táxis como um anjo das suas asas gosto de ir e olhar para a frente e para trás e para os lados gosto da total irresponsabilidade de me deixar conduzir pelas ruas ao volante de um homem que não conheço num barco ainda mais desconhecido costumo pousar o chapéu sobre os joelhos o guarda-chuva no chão sim porque eu ando sempre de guarda-chuva às vezes suo e é aí que medito na alma na metafísica na pobre filosofia dos homens é aí que tenho pena de todas as almas e de todos os metafísicos e de todos os pobres filósofos é aí que imagino que há sol e flores e peixes em lagos algures na casa de alguém e provavelmente no mar sim é nos táxis que desobedeço a deus e me sinto numa missa de incontáveis hóstias de todas as cores/