Páginas

quinta-feira, 31 de março de 2011

Satã


23.

Garantem os cristãos que no princípio
era o Verbo e o Sopro era Deus. Transmitem que tudo
era escuro e não havia ainda estrelas,
nem planetas com nomes gregos. Proferem
que num espaço que não era ainda espaço, a íntegra
majestade da Luz se fez soprando. Esta noite,
atrapado de treva, socorri-me aflito de um círio.
Cego, tateando, dei com o pavio
e sussurrei mentalmente: «acende-te sésamo!»...
®

quarta-feira, 30 de março de 2011

Satã


22.

O que incomoda nas moscas é que voam
e assim não permitem uma visão objectiva
da sua arquitectura, nem a percepção cuidadosa
da cor que carregam aos ombros.
O colorido de uma mosca é um preto tão vasto
que até verdes parecem louvar as asas gigantes e
translúcidas com que prometem ovos quando pousam.
®

terça-feira, 29 de março de 2011

Satã



21.

ao adormecer Li uns versos em alemão
e, porque não sei alemão, tudo me constou certo
, amplo, verdadeiramente amplo,
verdadeiramente certo.
Aqueles versos fluíram-me pelas veias
no clamor adorável de cada sentença.
Aventuro agora dizer que encetei bem o dia,
pois que nutri, lendo versos em alemão, é
exactamente a ignorância que desejo aos
que lêem os meus versos portugueses.
®   

segunda-feira, 28 de março de 2011

Satã
















20.

¿Se te fui dedicado? sim, sou. Mas no hiato
entre uma melancolia e outra, caí. ¿Confreires?
¿Nós?
Pensar isto molestou-me as recordações, encarcerou
o dormir e fez-me acordar antes do Sol-Novo.
É primavera, bem sabes, e os equinócios
são entes duvidosos, assombrados com a
florescência divina. Brumosas cobrem as certezas
e nascem dúvidas como espinhas entre os dentes.
®

domingo, 27 de março de 2011

Satã


19.

A luz de um cair-da-tarde no fim de Março
traz uma representação de desesperança
que nem o sono alivia no cansaço.
Com a insolência distinta dos pombos,
os céus tornam-se sonorosos, verdes-escuro,
apartando os anjos das almas que os refletem.
Pior seria ter de andar pelo campo,
respirar fedores de terra e sementes de trigo,
ver bois ao longe com medo de estarem perto,
ou ser tentado a colher uma réstia de flor como
acto de contrição por todo o mal de ter nascido.
Antes a cidade e a luz eléctrica: iluminação
pública, semáforos.
Antes passeadouros a imitar canais venezianos.
®

sábado, 26 de março de 2011

Satã

18.
Não posso garantir, mas creio
que as fibras da face já não me atendem...
Nada de físico sustenta este credo. E por isso É um credo.
¿Terão alguma vez estes músculos
sido obedientes à minha firmeza?¿Que raio é a vontade?
Julguei que quando «mentalmente» aspirava ao esboço
de um sorriso, numa mecânica síncrona, os lábios se
verticalizavam em amostra inequívoca de aprazer...
¿Como posso ter pensado que aquilo que na «mente»
se articula como «sorriso», nos lábios coincide? ¿ Acaso
a reputação de um sorriso «mental» pode corresponder
ao sentido de sorriso que os lábios têm?
Tantos equívocos. E hoje, agora, não posso garantir,
mas creio,
que as energias da face não me atendem.
®

sexta-feira, 25 de março de 2011

Satã





















17.

Na morte do Prof. Eduardo Chitas

Era filosofista,
nunca tinha deixado o costume das
camisas quadriculadas dos pescadores
de Vila-Franca –, estalinista sem maneiras,
Morreu, chamava-se Eduardo
e ninguém o reclamou em voz alta.
«...Que sofria do coração...» –,
¿quem não sofre?
 ,– «...Que já se tinha reformado...» –,
Sim. Foi a maior alegria
da sua vida mundana de professor.
«...Que estava ultrapassado... Que questões,
agora... depois do muro... ¿Deus sem Homem,
Homem sem Deus?... que disparates...»–,
Os filosofistas estão sempre ultrapassados.
É por estarem superados que, vencidos,
não deixam de regressar ao
currículo olímpico da sabedoria.
Não são filósofos, ¿percebem?
É no «ismo» que constroem a conduta.

Na semana passada, Eduardo Chitas,
nosso camarada, deixou a Terra
onde, todos os dias, duvidava.
®

quinta-feira, 24 de março de 2011

Satã


16.

Projecto numas folhas de pequeno papel amarelo,
o início e o fim das inumeráveis narrativas que nunca irei escrever.
Estou tão certo de que nunca as irei escrever, como estou certo
da existência de folhas de pequeno papel amarelo.
¿Mas... se lhes conheço a entrada e o acabamento,
não será como se já as tivesse escrito?
¿Viverão essas narrativas, que acredito nunca irei escrever,
numa entrepausa entre mim e o duvidar, fazendo-me ignorar
que num espaço oculto da matéria visível, já escrevi
e li, o que só por dor não soube escrever?
®

quarta-feira, 23 de março de 2011

Satã

15.

Ainda não era noite, quando, na forja
do café, ardi um dedo no que de mais digital
o confecciona. Adivinhei, como não sabia que se podia adivinhar,
o torrão externo do tacto. E sobrou ter a minha pele agarrada
àquela grelha invisivelmente ardente, para
, pela primeira vez, Ver a impressão do que me toca
invés da habitual intuição de tocar. Tocar
pele e ter tocada a pele, são duas substâncias tão distintas
e removidas da realidade nuclear dos sentidos,
que se torna insuportável pensar que não
se sabe, nem por estimação, daquilo que experimenta o que nos toca, a menos que, por um segundo, o fogo-real-que-queima
, nos acenda... um dedo
, que seja.
®

terça-feira, 22 de março de 2011

Satã


14.

Vi um psicotécnico a correr junto a uma autoestrada.
Vestido, evidentemente. Usava uns calções, muito azuis,
uns collants muito pretos, um gorro muito castanho e
uma camisola sem mangas seriamente justa. Ali,
acelerando em collants, circulava na via pública toda a psicologia diplomada das universidades, todo
o pensamento analítico-sintético das escolas primárias
e, como suplemento, o emblema majestático do futebol: O
Clube do Porto. O psicologista que passava, e tossia, do fumo
largado em escape pelos automóveis, demonstrou-me
, cientificamente, como é justo, que numa manhã de chuva, podia
ser de Sol, a lógica da psique tosse enquanto corre e usa
gorros muito castanhos, só para mostrar quão saudável é
na apreciação cuidada da mente aberta do alcatrão.
®

segunda-feira, 21 de março de 2011

Satã




13.

Quem vê nos astros roteiros da vida futura
; quem cata em búzios outra coisa de divinatório 
que no búzio não seja o som do mar; OU
, ainda, quem,
em lâminas de papelão supõe algo
mais legível do que os títeres estáticos nelas impresso; OU
, ainda, quem,
meneia a cabeça em nãos e sins ao solavancar de um pêndulo... poderá julgar tudo, querer tudo para as suas cubagens
extra-humanas mas mais não deixa de ser que
uma porteira citadina à fala com as comadres, fazendo da esfregona e das chinelas um oráculo rubro da sua mal-decência.
Não desconfio da existência influente de feiticeiros, magos, lamas
, padres, damas-de-companhia, nem mesmo de Deus quando
se obriga a trazer Luz aonde governa a cerração. Pois, para que arriscasse vacilar, teria de provar que não viviam. Na realidade,
até já me atravessei com Deus e com Damas-de Companhia.
Mas... com franco sortilégio, só me prostro perante uma utopia
: a daqueles sábios que suportando acesa uma fogueira,
julgam que é ela mesma o Sol oriente.
®

domingo, 20 de março de 2011

Satã


12.

Ocupar uma Só divisão no fogo, implica conceder
a cada parede uma janela extensíssima,
por onde passe vento, a luz... quando há luz, o
som dos gritos na rua... quando há gritos na rua,
e fruir uma cama que se compare a uma nuvem
onde se consiga distinguir a humanidade inteira
e de onde tudo possa ser apetecido tão alto
se está do que mundano é
no dia-a-dia rústico das Cidades Colonizadas.
Conseguido, a divisão confinada dessa casa,
transforma-se num inflamar de olhos e peito
fazendo «Abril» para sempre uma Lua, Cheia-de-Março.
®

sábado, 19 de março de 2011

Satã

11.



Endireito o olhar, perplexo, em direção ao Ar
, com o mesmo receio e desentendimento
com que Adonai terá considerado o dilatado espaço,
depois de um deus intermédio ter descumprido ao
Deus cúmplice dos seres no dia da expulsão do Éden.
Conforme o longínquo Adonai,
encontro gente, deparo-me
com aquilo que cometem, cogitam e... ocultam numa
enganadora sinfonia de charme art-deco.
Se, o paraíso na Terra existe, ...profetizou Daniel,
então o que distingo vive num paralelo plano apartado Dele.
E eu, bebendo um café americano com sabor a áfrica,
sei que não me consigo alinhado nem com o Olimpo terrestre,
muito menos com a Terra pós-moderna dos génios.
®

quarta-feira, 16 de março de 2011

Satã


10.

Sem querer explicar como sei-o impossível e vã
tentativa a que não me exponho..., tenho visões
firmes de tacto e realidade, com Cesário ambulando
em Lisboa. A única Rua que percebeu.
Durante essas conspecções,
, privilégio de quem É vigilante,
assisto-o a tentar atravessar a estrada
[onde, por ironia, se empina
há muito o seu torso
consumado em bronze]
e a ser atropelado por uma nave de invenção humana....
¿automóvel?... talvez... Sim, um automóvel que na recorrência
das aparições vai cambiando de cor, como se alternasse as tinjas
da paleta-mostruário dos carrinhos-de-linha na Sua retrosaria.

Cesário foi um retroseiro, nada mais, que
tentava diariamente atravessar Lisboa e
que na metade da travessia era mortalmente
derrubado por um engenho de cores mutantes:
Aviso permanente ao retroseiro de que por mais poema
ou escultura erecta que detivesse na Rua que perfilhou,
seria perpetuamente limitado e reduzido de forma a que nunca pudesse delirar adiante da retrosaria.
®

Satã

9.

Há quem reclame a noite como sendo o cálice
de todas as substâncias geradas, as trevas que antepassaram a
Luz do Mundo e, por isso, o ninho afável
dos mestres-de-obras do primeiro e colossal
advento da Terra
: O Sol.
Quem demanda tal ouro para a noite, é porque não sabe
nem intui, que o dia é esplendoroso em si,
que nada, nunca, o precedeu, nem  mesmo as trevas,
e que a noite não é mais do que o ângulo sofredor
a que a Lua está obrigada.
@

segunda-feira, 14 de março de 2011

Satã

Para o António Cândido Franco



8.

Quando consigo ler aquilo que Pascoaes escreveu
, experimento um calafrio nuclear na boca e uma vontade
periódica de gritar. Nunca me transporto para Amarante,
nem me sinto encarnar árvore em S. João de Gatão...
... às vezes nem me recordo do focinho avatar
com que sempre planeou as fotografias
em que se deixou fixar.
Aquilo que Pascoaes escreveu ainda não foi escrito.
É um lento e pesaroso meio-dia dos vocábulos, uma via-sacra
que ele abriu com o desenho em branco da sua caligrafia loira
, redonda, povoada de anjos e cristos aguarelados.
®

Satã



7.

Há quem chame «poeta» àquele que «faz» poemas.

Mas os poemas não se fazem, nem poeta tem directa
relação com poema. Poema, justamente, é
aquilo que não se faz, que está além do fazer. Ser Poeta
é ter um busto – até pode ser o da república – empedernido nas
células, no peito, nas falanges dianteiras do corpo... O poema 
existe. Está lá, num «lá» encoberto a que apenas chegam os que
, removidos da alma, esperam infinitamente.
®

sábado, 12 de março de 2011

Satã


6.

O que eu escrevo é tudo o que suporto. Tudo
o que sei... que soube, que... nunca saberei.
Sou um escritor de actas, actas do futuro
translúcido e inculpado que não acercarei.
Porque escrevo actas, e escrevo-as
sem ter testemunhado o momento que traço, Ignoro
a tendência natural para julgar que já tive um passado
, que tenho presente (não tenho, mesmo que o supusesse
), e que o futuro não me espera. É nessa forçada ignorância
que sou alegre quando estou triste e triste quando estou alegre.
É neste trabalho quotidiano de secretário que sou feliz.
Não é motivo para tanto, bem sei... ¿Mas, se ser secretário,
traçador das actas do juízo final, me felicita as sensações,
porque não deveria viver esta ignorância infantil
e misericordiosa para depois adormecer
como se estivesse na quentura do primeiro berço?

sexta-feira, 11 de março de 2011

Satã

5.

Mal abri os olhos... esta manhã... vi-o. Sentado, aos pés da cama,:
Corto Maltese o espectro.
Como ainda não tinha posto os óculos e
a luz era fraca, apenas consegui, encorajando os sentidos,
experimentar ao longe, o calor vermelho
...e laranja da brasa do cigarro dele. Poucas coisas há no mundo (
não este mundo, mas o maior dos mundos, esse a que sempre me refiro quando digo: mundo)–, que aqueçam mais o ânimo de alguém exausto do que a fornalha dos cigarros de Corto.

com a luz da manhã a ferir as cortinas
e com os óculos aprestados, encarei-o.
Olhou-me, num espasmo cerúleo e muito terno. Falámos.
Coisas próprias de marinheiros, dervixes, caminheiros-na-neve.
Mas eu sabia, mesmo antes do começo, que aquele ensejo,
um dia que acontecesse, seria breve, instantâneo, de cruel
na despedida.  Deixei-o ver-me. Só isso...

quinta-feira, 10 de março de 2011

Satã



4.

Filosofar é uma espécie de canto-nono de «Os Lusíadas»,
na verdade
– e um dia que Deus queira, virá ao mundo um
Desejado Culto, provar que a verdade existe,
não é bela e é divina –
filosofar é como percorrer aquelas linhas
que Camões escreveu sem saber o que dizia,
num anúncio de descoberta sensual e sobrenatural,
pois tudo o que é natural está sobre a Natureza e é, portanto, sobrenatural. Ao filosofar, encontra-se
aquela brandura de Ilha,
aquele nadar de ninfas e desejos tão cavados,
que, sem o coração anotar, uma intuição irreversível nos
atravessa e, para a eternidade nos lança no nevoeiro de pensar.

quarta-feira, 9 de março de 2011

Satã

3.

O café antes do dia... fantasia barroca de um início.
O actor pausa o mérito no estojo dos chocolates... saboreia...
... «¡É brandy... Senhor!»... e a manhã sucede com cigarros,
eflúvio a papel de carta, ¡Flores!, junto às vidraças do estúdio.
O aguaceiro verte pelas paredes quadriculadas de vidro, No exterior, sempre no exterior, que ao actor a água nunca
flui adentro... Sofre a tentação de um livro... «¿Telefonia, talvez
...Senhor?». E o dia seguirá,
na opiácea rotação afortunada das horas.
®

segunda-feira, 7 de março de 2011

Satã

Ou.
Apetecemos chuva... se ela não vem, Ou.
Temos medo quando, desamparada, tropeça nos
céus e choca contra nós num dia plenário de gente.
No que respeita ao que vem dos céus,
tudo vacila entre o desejo na falta e
o temor na abundância... O céu responde-nos com atrasos
e nós, penitentes, castigamos o que sereno existe sob
a pele, mortificados de medo.
Eis a nossa história, e assim seja, pelo século dos séculos.
®

domingo, 6 de março de 2011

Satã - Domine - Cloridrato de Buprenorfina, 2mg

1.

Versailles, Monte Branco, Kiev... Açores
o fim. É um delgado átimo de susto. E ainda...
De que valeria conhecer todos os terrenos do mundo
se todos os pontos do mundo nunca me conhecerão a mim?
Ainda que me esforçasse, e esforço, por carregar
viagens no mais estreito dos vasos do meu tronco cerebral,
nunca serei dono de uma visão clara da longitude.
Sou.
Ser descontinuado entre meridianos (tenho
memórias, claro, e memória também – essa cada vez menor)
Mas nunca vi nada, nunca li nada, nunca escrevi nada, mesmo
que, no passado, tenha viajado entre continentes
, lido o que nenhum bibliotecário leu, escrito
o que nem Proust escreveu. Versailles, Monte Branco, Kiev...
Açores.... Ponto suicidário do Atlântico.
®